M. Guimarães da Rocha (Ed. 672)

…de como uma fortuna pode arrefecer o amor!!

Lisboa 28 de Março de 2014

Querida Manuela:

Espalmado entre estas duas folhas de papel, invadido pela angústia daquilo que tenho que escrever, recordo num lanceado olhar, o passado recente que nos uniu. Vejo-te bela, com uma candura no andar que, ao pisar, parecias flutuar sobre a calçada, sem nunca tocares as pedras irregulares que te podiam magoar os delicados pés. O teu bambolear escaldante e natural, que só rivalizava, com tuas feições angelicais, impeliu o nosso primeiro encontro, onde portão inicial esmaiou na naturalidade da aproximação. Embora sentindo o teu esforço na compostura homeostática da relação humana, a natureza levou-nos aos braços um do outro. Senti que se tinham unido duas peças dum sistema, concebido para funcionar em conjunto harmónico de tal forma interligado que a sua separação seria impossível. E tal foi durante estes anos, que vivemos juntos, em ninho de passarinhos, debicando beijos, sorvendo o mesmo amor, em que as almas se confundiram com os corpos, sob uma sinfonia celestial de entendimento recíproco.

E a vida foi rolando pelas calçadas do tempo, com um ou outro obstáculo, que nos obrigava a um ressalto intempestivo, que rápida e condescendentemente se saldava sempre num exacerbar de amor compensador da emoção sentida. Parecia que a compreensão, o esforço de aproximação e a necessidade mútua de estarmos juntos tudo ia vencer, com a naturalidade dos amantes eternos.

Tudo se ia processando neste ritmo, onde os sobressaltos não passavam de pequenos obstáculos com que a vida nos testa no desenrolar dos anos.

Os teus Pais vivendo no Alentejo dentro da herdade, proporcionavam-nos com frequência um agradável momento em família. Tua Mãe, orientando a rica confecção gastronómica local, despejava ordens naqueles empregados, como água em cascata, para no final apresentar uma invejável refeição, que transformaria qualquer anjo em pecador. A Maria exacerbava os cuidados nos temperos, parecendo adivinhar a minha sensibilidade gustativa, fruto de muita experiencia e controlo de mão, na confecção culinária.

À noite entre dois goles de Whiskey, teu Pai distinguia-me com os problemas da herdade, qual gestor em Assembleia Geral de Empresa. Rapidamente me apercebi que a agricultura que conhecia, era uma agricultura de subsistência, onde o amor ao produzido não era relacionado com o esforço e os custos de produção, o que tarde ou cedo iria conduzir inexoravelmente a uma despesa acrescida, ou quando muito, a um esforço despendido não compensador.

Progressivamente comecei a entender o teu Pai, o seu amor à terra, a sua luta pela sobrevivência, num sector difícil como é o da agricultura, onde a posse da terra comanda, desde que se consigam dominar todos os factores naturais. Factores que vão da relação com uma natureza madraça a um ambiente hostil, entre os trabalhadores, rechaçados pela falência duma concepção cooperativa, que nunca conseguiram dominar de forma coerente altruísta e comunitária. Parecia que a terra era mesmo feminina onde o ritmo de virilidade tem que passear de mãos dadas com a rentabilidade, para que a beleza concepcional resulte em pleno.

Teu pai foi sempre comigo um homem digno, correcto, educado, com quem estabeleci facilmente, uma boa relação de convivência e respeito, que me parecia ser mutuamente aceite.

O problema surgiu com a tua irmã e teu cunhado, que pareciam sempre desconfiar desta empatia mútua, escondendo-se atrás de possíveis heranças, que eu nem sequer concebia e muito menos aceitava. As nossas vivências passaram a ter uma aparência de felicidade, sempre que as nossas estadias coincidiam em casa de teus Pais. Alterando constantemente o combinado no apoio familiar, a tua irmã marido e filhos passaram a ser permanência constante em casa de teus Pais. As minhas relações de amizade com o teu Pai, foram sub-repticiamente postas em causa, resvalando para situações, onde nunca me senti à-vontade.

Espero que entendas agora alguma rigidez, que a mim próprio tive que impor, nessas estadas quinzenais, atitude que parecias reprovar, talvez afogada pelo amor filial, que te turvava a compreensão.

A súbita morte de teu Pai veio trazer ainda maior notoriedade a tudo isto, onde mais uma vez o teu amor fraternal se me impos duma forma assertiva, obrigando-me a uma convivência com tua irmã e cunhado que não consigo nem posso aceitar. Nunca fui favorável á divisão matemática do acolhimento mensal de tua mãe, que comigo partilha duma relação de uma desconfiança sentimental com teu cunhado. Vejo que os seus olhos se esbugalham e brilham agressivamente como cifrões, ao imaginar-se possuidor daqueles imensos hectares. Não entendo como pode pôr obstáculos, constantes á vinda da tua mãe para a nossa casa de Lisboa. Penso que isto acontece porque constata que ela se sente bem entre nós, fruto das boas relações que sempre manteve com a minha pessoa. Com efeito, a sua presença agrada-me, pelo carinho com que asperge os nossos filhos e, pelo nível intelectual que emerge das suas conversas do dia-a-dia da vida. Parece que desde sempre empatizámos  um com o outro. Tenho, contudo, a sensação de que a Senhora tua mãe, gostaria mais de continuar a mandar na sua herdade, sem grandes alterações ao que desde sempre foi habitual durante a sua vida.

Penso que ela tem razão e tem toda a razão para tal e, como sabes sempre lhe dei todo o apoio. A Senhora está no seu direito de fazer o que entender. Que raio! Ela é oficial e legalmente dona de tudo e, no meu entender, também moralmente o é.

As nossas desavenças vêm daí, de concepções diferentes da vida, e que explicam que eu entenda que a tua Mãe deve ficar onde quiser e entender. Toda a Família só tem a obrigação de a apoiar em tudo o que a senhora decidir! Comigo, a tua mãe tem sido sempre educada, mesmo carinhosa e, a sua presença na nossa casa em Lisboa não me é desagradável, reconhecendo embora, que Ela sente que lhe faltam as pessoas a quem dirigir e ordenar, como sempre fez no campo. Mas tem-se adaptado mesmo muito bem, dada a sua idade, posição social e prestígio que sempre disfrutou no Alentejo.

Como podes ver e certamente já pressentiste, as lamentáveis desavenças que se vêm instalando no nosso relacionamento, provêm duma não-aceitação da realidade evolutiva da vida. As nossas relações têm que voltar ao que sempre foram, sob pena de caírem numa vivência insuportável.

Se o teu cunhado quer a herdade que fique com ela; não me oponho de forma nenhuma. Aquilo, para mim era um local onde convivia com teus Pais, sentia a sua comunhão com a terra e toda a família, e, via o amor que partilhavam connosco relativamente aos nossos filhos. Não tenho vocação, nem conhecimentos de agricultura, embora nesta fase da vida, comece a sentir já algum chamamento da terra. Mesmo assim não entendo e nem aceito a tua posição agressiva, que destruiu a vida que nós construímos paulatinamente, assente num amor consolidado na confiança mútua.

Eu casei contigo, apaixonado, tal qual eras, com tuas exuberâncias medidas, teus complexos primorosamente acantonados atrás duma cultura bem sólida, e duma extraordinária formação de carácter, que sempre exultei. Apoiámo-nos mutuamente nas nossas carreiras e, podemos dizer que não nos demos nada mal. Ambos atingimos os graus previstos na nossa evolução.

O teu cunhado, que assumiu uma posição tão irredutível, tem que aceitar que, se deseja a herdade, tem que se submeter ao cálculo de contrapartidas feitas pelos advogados. Esta minha posição é de elementar defesa dos direitos dos nossos filhos, e não consigo entender como tu podes ter uma posição contrária e, aceitar a arrogância e ambição intolerável da tua irmã! Não percebo como se pode pensar doutra forma, por mais voltas que dê à cabeça.

Sei que a tua irmã e o teu cunhado, talvez não tenham preparado a vida para concretizar o que pretendem. A tua irmã sempre descuidou a sua carreira profissional, que chegou quase ao fim pouco distanciada do ponto de partida e, o teu cunhado exagerou em incongruência e lutas com o trabalho, de tal forma, que este não parecia ser a sua vocação. Penso que não foi também homem de grandes poupanças ou retraimentos e, que eu saiba, os investimentos nunca foram o seu forte. Tinha um conceito medieval de proprietário Alentejano, mais esbanjador que endinheirado, penso eu, provavelmente de forma errada, pois desconheço as suas capacidades financeiras e, nem estou interessado em saber.

Estamos os dois envolvidos numa “guerra”, que não criámos e que eu não desejo. Em jovem já fui obrigado a entrar numa guerra que não era minha e, da qual sofri as consequências dessa luta inútil e, para mim muito prejudicial. Não pretendo entrar em mais nenhuma disputa guerreira, seja ela qual for!

Nesta fase da nossa vida, penso que o que precisamos é de nos defender das agressões alheias e tentar vive em paz, connosco e com o mundo.

Se o teu cunhado quiser vender a parte dele eu compro-a para ficarmos em paz e, o mesmo digo se Ele quiser comprar a nossa parte. O que eu não quero é transformar a nossa vida numa guerrilha constante e inútil. Bem sei que, mercê da Vossa boa educação, tudo se tem processado, aos olhos de estranhos, como se houvesse um “entendimento entre anjos”. Mas tu sabes bem, que não é nada assim e que, tudo só vai acalmar, quando estiver bem esclarecido todo o inexistente problema:-Para mim o problema é a paz consolidada e não as ligações podres; para o teu cunhado o problema é a Terra, que diz que ama e à qual, julgo que nada deu.

As condições estão bem explícitas. Agora ele que tome a decisão que entender. Desculpa, mas continuar assim não. Com muita mágoa, para evitar o desamor que me começa a invadir, tenho que definir bem o problema, aguardando com muita angústia a tua reflexão sobre a situação actual das nossas vidas.

Aguardando ansiosamente a tua decisão, despede-se, aquele que ainda muito te ama

Leonardo Garrilha

——————————————————————————————————————

Mais artigos

• BUTAR PULHAS EM SÃO PEDRO DO SUL
A comer é que a gente se entende
O Xarope terapêutico de efeitos duvidosos
Moda é Moda
A guerra no K3
O Volfrâmio
O quarto particular
Um conto de vez em quando (2) – A ida às sortes
Um conto de vez em quando (1) – PIOR NÃO ESTOU SR. DOUTOR..!
COMO SE DIVERTIA O POVO NOS ANOS QUARENTA E CINQUENTA DO SÉCULO XX (1) – E(Ed. 655)
COMO SE DIVERTIA O POVO NOS ANOS QUARENTA E CINQUENTA DO SÉCULO XX (1) – E(Ed. 654)
São Bartolomeu da Ponte (Ed.653)
A FILARMÓNICA HARMONIA (Ed. 652)
•  A RAMPA DA CAPELA DE S. ANTÓNIO (Ed. 650)
NO CAMINHO PARA A PONTE (Ed. 651)
DA FONTE DA CERCA À FARMÁCIA DIAS (Ed. 649)
Vivências dentro das repartições no edifício da Camara Municipal (continuação) – Ed. 648
Vivências dentro do edifício da Câmara Municipal – Ed. 647
A CÂMARA MUNICIPAL – Ed. 646
“O JARDIM DA VILA” (continuação) – Ed. 645

Redação Gazeta da Beira